domingo, 14 de março de 2010

Quando a mãe falta


Luís Francisco ficou viúvo um dia depois de ter sido pai de Carolina, em Outubro de 2006. A sua mulher, Susana Amorim, sofreu de síndroma de Hellp após o parto e acabou por falecer na sequência de um AVC. No primeiro ano, Luís diz que "andava a pairar". Não se recorda de quase nada. Tem flashes apenas. Uma das imagens mais fortes que lhe vem à memória é a da filha com dias de vida, ao seu colo, à procura do peito materno. "Tinha de acordá-la a meio da noite para lhe dar o biberão e via a cabeça dela de um lado para o outro à procura da mama... Nessas alturas, sei que não conseguia segurar as lágrimas."

Como se aquela dor não bastasse e a responsabilidade de ser pai sozinho não fosse suficiente, o destino pregou-lhe nova partida. Três meses depois de perder Susana, Luís viu a outra mulher da sua vida partir. Também assim, de repente, sem mais. "No dia 25 de Dezembro, a minha mãe sentiu-se mal, foi para o hospital, e a 7 de Janeiro faleceu. Apareceu-lhe um cancro, que era desconhecido até aí, e teve uma embolia. Então fiquei mesmo sozinho. Já tinha perdido o meu pai há uns anos. Valeu-me a minha irmã, que se desdobrou em baixas médicas e férias para me ajudar, o resto da família e os amigos, que foram incansáveis. Andaram comigo ao colo... Acho que ainda hoje andam!"

Luís tem 35 anos, Carolina 3. Vivem ambos para os lados da Venda do Pinheiro, onde já têm uma rotina instalada. De manhã, Luís leva a filha ao infantário, a poucos quilómetros de casa, e segue para o trabalho de produtor gráfico numa empresa das redondezas. Vai buscá-la às seis e meia, dá-lhe banho, prepara o jantar - "tenho sempre sopa feita por mim ou por alguém da família" -, e depois vem o período preferido de ambos, o da brincadeira. "A Carolina gosta de brincar com bebés, Legos, faz desenhos e pinturas", explica. Às 21 é hora de ir para a cama. "Se for mesmo às nove ainda há história, se já for mais tarde não há história", conta.

Sentimento de revolta

Quem o ouve pode pensar que conseguiu superar tudo com desembaraço, mas na realidade não lhe é fácil falar do que aconteceu, embora nunca saia da pose de bonacheirão bem-disposto. Confessa que, quando recebeu a notícia da morte da mulher, se sentiu "vazio". "Parece que não estamos nem neste mundo nem no outro. Não andamos, deslizamos", descreve. Seguiu-se "uma revolta muito grande e uma sensação de injustiça". Afinal, Carolina foi uma filha desejada e programada depois de quase 15 anos de vida a dois. Susana foi a primeira e única namorada. Conheceram-se tinha ele 17 anos. Na gravidez, tudo correu "normalmente", desde as consultas médicas até ao parto na Maternidade Alfredo da Costa (MAC). Luís assistiu ao nascimento da filha, que foi "relativamente rápido", segundo ele, demorando "talvez meia hora, 45 minutos". Nada fazia prever aquele desfecho algumas horas depois.

A síndroma de Hellp é rara e pode levar a insuficiência cardíaca e pulmonar, hemorragia interna, acidente vascular cerebral (AVC) e outras complicações graves na mãe. Tanto pode ocorrer durante a gravidez como, no caso de Susana, após o parto. Os sintomas incluem fadiga, mal-estar generalizado, vómitos, dor de cabeça, retenção de líquidos e algumas vezes convulsões, mas a doença não é fácil de diagnosticar.

Luís considera que houve negligência, uma vez que "ela queixou-se de dores de cabeça e mal-estar a seguir ao parto" e, na sua opinião, "não lhe deram a devida atenção". O caso chegou à comunicação social, porque Susana esteve quase uma hora à espera de ser transferida da MAC para São José já depois de sofrer convulsões e o AVC. Tudo porque o INEM e a MAC não se entendiam sobre quem devia fazer o transporte da doente. "Não sei se aquele tempo de espera foi fatal ou se quando teve o AVC já a hemorragia a tinha afectado muito. Cheguei a meter o caso em tribunal, mas foi arquivado. Dizem que nestes casos não há nada a fazer. Nem quero mexer mais nisso", desabafa, para concluir: "A Susana não merecia aquela sorte."

Durante um ano, o jovem pai ficou em casa da mãe, em Odivelas. Gozou cinco meses de licença de maternidade, começou a trabalhar e só depois regressou ao apartamento onde vivia com a mulher. Não mudou praticamente nada, nem escondeu as fotos de Susana. Carolina sabe e diz que "a mãe Susana está no céu".

Pai a tempo inteiro

Nos primeiros tempos, encarar a vida sem a mulher e a mãe foi "bem mais difícil do que cuidar da Carolina". Confessa que pensou no suicídio "mais do que uma vez", mas a filha e o apoio dos que o rodeavam foram mais fortes. A irmã, Ana Cristina (41 anos), incutiu-lhe desde o início que os bebés "não se partem, precisam de apanhar sol, frio, etc., e têm de se adaptar ao mundo cá fora". Talvez por isso, ou por instinto, nunca sentiu grandes dificuldades em mudar as fraldas, dar banho ou vestir a filha. "Agora, sim, é mais difícil, porque ela já foge", conta a rir, confessando que neste patamar o mais complicado é "conjugar roupas". "A cena dos penteados e do ganchinho... Sou homem, para essas coisas não tenho mesmo jeito!"

E se dar-lhe banho, alimentá-la ou vesti-la nunca foi problema, já educá-la "sem o outro lado" começa a revelar-se uma tarefa hercúlea. É que, neste caso, a mesma pessoa que ralha é a que vai passar a mão a seguir. "Quando o meu pai me punha de castigo, a minha mãe vinha ter comigo e explicava-me porque é que estava de castigo. Eu tenho de fazer os dois papéis. E gerir essa situação às vezes é complicado", até porque, segundo diz, a filha tem uma "personalidade forte" e um "mas eu quero" sempre na ponta da língua. "E eu não aguento ouvi-la chorar mais do que dez minutos."

As preocupações de pai e de homem não se ficam por aqui. Luís tem noção de que "há coisas" de que não vai conseguir falar com a Carolina "como uma mulher, uma mãe". Como, por exemplo, sobre "coisas íntimas, dos namoros", diz a rir, concluindo: "Por força das circunstâncias, nem eu voltei a ser o mesmo nem a Carolina será educada nas circunstâncias normais, entre aspas." No entanto, diz que tem sorte, porque a filha não é uma criança difícil, "come bem, até quando faz birra". É doce e cheia de energia, embora revele "um feitio impetuoso e independente", que acaba por caracterizar assim: "É uma Susana em ponto pequeno."

Vida própria

Após a morte de Susana, Luís passou a olhar para "todas as mulheres" como se fossem "potenciais mães da Carolina", confessa numa gargalhada. Com o total apoio da família, retomou a sua vida pessoal e social. Fê-lo até como "autoterapia", arranjando tempo para sair com amigos, aos fins-de-semana. "Felizmente, tenho muita gente próxima que não se importa de ficar com a Carolina quando preciso." Há um ano, começou a namorar com Lurdes, com quem pensa vir a ter filhos. E, apesar de a filha ter aceite "muito bem" a namorada do pai, Lurdes só passou a viver com Luís e Carolina na segunda-feira passada.

Luís diz que sente que tem uma relação "diferente e especial" com a filha e explica que passou a encarar a morte de outra forma, como algo que "pode acontecer a qualquer momento". Mas, se "a vontade de viver é agora maior", o medo de morrer também o é. "Acho que ainda hoje estou para apanhar com a chapada da morte da Susana e da minha mãe. Tenho um medo constante de me ir abaixo", confessa.

Publicado na Revista Única de 6 de Março de 2010

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